quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

O choro dos jasmineiros

Fortaleza de São José de Macapá; ao fundo, o Trapiche
Eliezer Levy, em foto de 26 de outubro de 2004, do francês
Olivier Marcille, marido da minha amiga Iara Marcille

Brasília, 2 de fevereiro de 2012 - Macapá, minha cidade natal e capital do estado do Amapá, completa 254 anos depois de amanhã - foi criada em 4 de fevereiro de 1758. Ela é singular, porque se debruça para o maior rio do planeta, o Amazonas, na margem esquerda, próximo à boca, e na confluência da Linha Imaginária do Equador. Não há como não a localizar no mapa. O Amazonas despeja pelo menos 200 mil metros cúbicos por segundo da sua água túrbida no Oceano Atlântico, e chega a despejar 600 mil metros cúbicos de água por segundo no mar. Deposita também no Atlântico 3 milhões de toneladas de sedimento por dia, 1,095 bilhão de toneladas por ano. Assim, a costa do Amapá está crescendo. A boca do rio, se escancarando do arquipélago do Marajó, no Pará, até a costa do Amapá, mede 240 quilômetros, e sua água prenhe de húmus penetra 320 quilômetros no mar, atingindo o Caribe nas cheias e fertilizando o Atlântico com 20% da água doce do planeta. O húmus torna a costa do Amapá uma explosão de vida marinha, o ponto mais rico da Amazônia Azul, no Brasil mais mal guardado pela Marinha de Guerra e menos estudado pela academia.
Apesar de se debruçar no maior manancial de água doce do mundo, as torneiras de Macapá, às vezes, vertem lama. Também é recorrente a falta de energia elétrica na cidade, que dorme na Idade Média. É porque alcaides, governadores, parlamentares e representantes do Amapá no Congresso Nacional costumam cagar e mijar na teta que os alimentam, e que mordem com fome canina, como víboras furiosas. Não incluo nessa matilha de cães sarnentos os políticos sérios. E nesta época do ano, Macapá fica ainda mais esburacada. Sem redes de esgoto e de águas pluviais e asfaltada com material vagabundo, as ruas da cidade são perigosas - as funerárias, os pronto-socorros, as oficinas de automóveis e as borracharias que o digam.
E, no entanto, se trata de uma cidade estratégica, pois o Porto de Santana, na Região Metropolitana de Macapá, é o mais próximo simultaneamente dos mercados dos Estados Unidos, Europa e Ásia (via Canal do Panamá), e seria um ponto natural de convergência de produtos de toda a Amazônia brasileira, e também peruana, além da Região Centro-Oeste. Isso, e a costa do Amapá, a mais rica do planeta em vidas marinhas, dão um extraordinária potencial de riqueza à região. Só falta concluir a BR-156, que liga Macapá à América Central. Mas a rodovia é construída há 70 anos, já enriqueceu muita gente e não tem data para ser inaugurada. O município de Macapá conta com 407.032 habitantes (IBGE/2011), e sua região metropolitana, com 509.883 habitantes. Trata-se da terceira maior aglomeração urbana do Norte - 60% da população do Amapá.
Macapá vem do tupi, macapaba, lugar de muitas bacabas, palmeira nativa da região, a bacabeira (Oenocarpus bacabat), de suco inigualável. Macapá também já se chamou Adelantado de Nueva Andaluzia, em 1544, por Carlos V de Espanha, numa concessão ao navegador espanhol Francisco de Orellana. Creio que seus grandes cartões postais são a Fortaleza de São José de Macapá, uma das sete maravilhas brasileiras, escolhidas por internautas; o Trapiche Eliezer Levy, com 472 metros de comprimento; o Monumento Marco Zero; e o Estádio Milton Corrêa, conhecido como Zerão, e que é dividido pela Linha Imaginária do Equador, com capacidade para 5 mil pessoas.
Nós, amapaenses, não somos colônia da França, como a Guiana Francesa o é, graças ao barão do Rio Branco. E éramos paraenses. Em 13 de setembro de 1943, o presidente Getúlio Vargas criou o Território Federal do Amapá, que, em 1990, foi transformado em estado. Se continuássemos paraenses Macapá seria mais uma Afuá, na ilha de Marajó, pois os governadores do Pará, todos eles, parecem alcaides, só se importam com Belém, a capital.
Sou macapaense da gema, e vivi, ininterruptamente, em Macapá, até os 17 anos, quando me mudei para o Rio de Janeiro e, atualmente, vivo em Brasília. Sempre que posso estou lá... Amo várias cidades, e ando nelas da mesma forma que faço descobertas no corpo sempre inesgotavelmente misterioso das mulheres, maravilhando-me com a descoberta das chaves dos segredos que vou desvendando na caminhada de aventura. Moro em Brasília, mas vivo numa dimensão em que Brasília se mistura a Belém do Pará, ao Rio de Janeiro, a Manaus, a Rio Branco, a Goiânia, a Santarém, a Buenos Aires, a Macapá, porque todas essas cidades cabem no meu coração, mas Macapá é uma das amantes que mais me emocionam, pois seu cheiro de jasmineiros chorando perfume em noites tórridas, minha infância absolutamente mágica, a sensação dos primeiros beijos, que serão sempre cataclismos de rosas vermelhas, o Trapiche, o Macapá Hotel, as primeiras paixões, os Beatles, a casa do poeta Isnard Brandão Lima Filho, as exposições de pintura de Olivar Cunha, a casa do poeta Herbert Emanuel, que era criança quando a frequentei e ia lá para curtir suas irmãs e prima, a casa da Leila e da Sílvia, irmãs do compositor Osmar Júnior, que na época era criança, os papos que varavam a madrugada, regados a Pitú, as madrugadas debruçado sobre o papel em branco, o milagre que se renovava a cada vez que a poeta Alcinéa Maria Cavalcante ofertava um olhar e um sorriso só para mim, guardo tudo isso num relicário, no meu coração.
Cai a noite e o rio Amazonas ruge na frente do Macapá Hotel. O Trapiche lembra uma rodovia que leva ao mar, e a noite é tão azul que sangra. Estou sentado, sozinho, num quiosque, e degusto Cerpinha enevoada, no meu delírio. Parece que estou só, mas converso com Isnard Brandão Lima Filho, Alcinéa Maria Cavalcante, Iara Marcille, Deury Farias, Olivar Cunha, Joy Edson, José Montoril, Fernando Canto, Raimundo Peixe, Alcyr Araújo, Luiz Tadeu Magalhães, Manoel Bispo... Myrta Graciete, Tereza, Leila, Telma, me beijam, um cataclismo de rosas vermelhas. Ouço merengue. Um navio, grande como uma cidade, surge, lento, até passar por nós, como uma nave feérica. O cheiro de Chanel número 5, Dom Pérignon, maresia e leite da mulher amada toma conta de tudo, na minha memória.

Um comentário:

  1. Olá, Ray. É a primeira vez que leio algo seu e, diga-se de passagem, que leio alguma coisa exposta de maneira tão apaixonada.
    Seu texto é dulcíssimo e desce por nós como mel escorrendo por seu vasilhame. Parabéns.
    Muitos sonham em conhecer países longínquos, outros as lindas praias do nordeste. Nunca ouvi alguém dizer que gostaria de conhecer Amapá. Se você faz parte dessa porção, saibam que estão todos enganados ,pois alimento, apesar dos 72 anos, o sonho de conhecer nosso extremo norte. Conhecer Calçoene e outras curiosidades que ouço falar.
    Mais uma vez parabéns, pelo seu texto e por sua terra.

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