sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Um caso de Apolo Brito

O frio, naquele ano, era mais intenso do que em anos anteriores. As pessoas passavam apressadas, nos seus agasalhos, pelo campo visual de Esmeralda. Na sala, pairava o silêncio e um cheiro bom de café recém-coado. De repente, a mulher que esperava por Apolo Brito levantou-se e pôs-se a andar de um lado para outro. Lembrava uma potranca. Esmeralda acostumara-se a ver entrar, ali, todo tipo de beldade, mas não tão bonitas quanto aquela. Tinha os cabelos longos e abundantes, louros, e olhos verdes escuros.

- A senhora quer um cigarro? - ofereceu-lhe. Ela interrompeu o vai-vem e apanhou o cigarro.

- Obrigada! - disse, apanhando o Charm que Esmeralda lhe estendeu.

- O sr. Apolo não passa das dez - tranquilizou-a.

Com efeito, o detetive chegou às dez em ponto. Cumprimentou as duas mulheres, cruzou a sala e entrou no seu gabinete. Esmeralda deixou passar um pouco e entrou também no gabinete, demorando-se lá uns três minutos. Ao sair, disse à senhora para entrar.

Apolo Brito aguardava-a sentado quase de costas para a porta olhando através de uma fresta na persiana a rua no Setor Comercial Sul. Voltou-se e a convidou a sentar-se. Tinha as mãos grandes e peludas - elas tremiam ligeiramente.

- Vamos tomar café? - disse Apolo. Sua voz era firme e seus olhos negros, ternos.

- Vamos - disse a mulher, dominada por ele.

Esmeralda entrou com uma bandeja de prata, um bule também de prata e um açucareiro e xícaras de porcelana, com as respectivas colherinhas de prata.

Tomaram café em silêncio.

- Fique à vontade e me conte tudo - disse Apolo Brito. - Nós somos como os psicanalistas. Temos de saber tudo. Às vezes, uma coisa que parece não ter importância é o que nos leva a descobrir o que nos interessa. - Fez uma pausa. - Não se preocupe quanto ao sigilo - disse.

- O problema é com a minha filha.

Frênia tinha quatorze anos, um metro e sessenta e cinco, cinquenta quilos, os olhos verdes da mãe, e era ruiva. “É de fazer Vladimir Nabocov se babar” – pensou Apolo Brito.

- De uns tempos para cá, ela anda tão estranha, calada, nervosa, quase histérica. Quis mandá-la para a França, Lyon, para passar uma temporada com a tia, mas o padrasto se opôs. Já tentei conversar com ela de todas as maneiras, inutilmente – disse a mulher, apresentando uma foto ao detetive.

Frênia estava entre a mãe e o padrasto, um tipo muito elegante - seus cabelos começavam a ficar grisalhos nas têmporas, mas não lhe tiravam a impressão de atleta em plena forma. Tratava-se de um trio cinematográfico, mas Frênia, ainda assim, se destacava entre os três. Nela, a sensualidade se continha à beira da explosão. É claro que pessoas como aquela não podiam andar normalmente na rua. Frênia era levada de automóvel para a escola, uma escola de freiras, discreta, e trazida de volta no mesmo automóvel. Frequentava um clube fechado. Ia, com frequência, a São Paulo e Rio de Janeiro. Desde que começou a agir estranhamente, no entanto, só saía de casa para incursões misteriosas, sempre de táxi.

No dia seguinte, Apolo estacionou próximo ao portão da casa de Frênia e esperou. Uma hora e meia depois, ela deixou a casa, de táxi, com destino ao ParkShopping. Andou à toa, parando aqui e ali, diante das vitrines, até sair do prédio e tomar outro táxi, desta vez rumando para o Núcleo Bandeirante. Entrou no Village. Apolo estacionou próximo ao motel e ficou imaginando com quem Frênia iria se encontrar. Cerca de meia hora depois viu-o chegar. “Diabo!” - disse, e ficou esperando o que ia acontecer.

Já anoitecia quando viu um táxi entrar e sair com a menina. Ligou o carro para segui-la, pensou um pouco e resolveu aguardar mais. Momentos depois, viu-o deixar o motel e seguiu-o até o Florentino, um restaurante frequentado por políticos e funcionários graduados do governo. Não se demorou lá, voltando, a seguir, para casa, dirigindo o que Apolo Brito supôs ser seu próprio automóvel.

- Sua filha não se encontra com ninguém - disse Apolo Brito à mãe da ninfeta. - Mas estou certo de que ela precisa fazer aquela viagem a Lyon, embora seu marido se oponha. Mesmo assim ela deve ir. Tire sua filha desta cidade; mande-a para bem longe daqui, de preferência para Lyon. Já estive lá. É uma boa cidade.

- Não compreendo... - disse a mulher.

Apolo Brito se levantou, foi até a janela. O Setor Comercial Sul morria na tarde de sábado. Ao voltar para sua poltrona, seus olhos estavam úmidos e bondosos.

- Tire sua filha desta cidade - disse, em um tom de voz terno, mas também duro.

- Por quê?

- A cidade não lhe faz bem - disse, evasivamente.

- O senhor descobriu alguma coisa muito grave e não quer me dizer. É seu dever me dizer o que é; estou pagando...

Apolo Brito pensou um pouco.

- Ainda não tenho certeza. Só acho que a senhora está perdendo tempo deixando-a aqui. - Fez uma pausa e disse, em tom de apelo: - Leve-a para Lyon, amanhã! Quanto ao dinheiro, não tem importância...

Naquela noite, Apolo resolveu dar uma espiada na casa de Frênia, na Península dos Ministros, bairro chique de Brasília. Chegou a tempo de ver sair um táxi com a ninfeta, que, minutos depois, descia numa casa em um ponto pouco povoado do Lago Sul. O morador mais perto dali ficava a uns quinhentos metros de distância. Apolo Brito estacionou o carro próximo à entrada da casa e ficou aguardando. Passado algum tempo, chegou outro táxi, dessa vez com a mãe da ninfeta, que entrou apressada na casa. Pouco depois, Apolo Brito ouviu um estampido. Arrancou em direção a casa, freou e entrou voando portão adentro. Ventava como o diabo.

A porta cedeu ao pisão. Entrou, olhou para cima e subiu as escadas de três em três degraus. No alto, viu um corredor e luz saindo da porta de um dos quartos. Correu para lá e parou na porta, com a Luger na mão. Lá dentro, sobre o tapete, jazia um homem. Seus cabelos grisalhos nas têmporas estavam manchados de sangue. Parecia que ele tinha ficado de lado de propósito para que a loura o acertasse do modo como acertou. A bala entrou pela têmpora direita e saiu pela têmpora esquerda. Na cama, abraçadas, mãe e filha choravam. A ninfeta estava nua, coberta apenas pelos cabelos de cobre, que lhe caíam nos ombros como uma cascata de metal fundido. Apolo pegou as roupas da menina e as estendeu a ela.

- Vou levá-las para local seguro - disse-lhes. - Temos que ir logo!

As luzes piscavam na imensidão do cerrado. As árvores curvavam-se ao vento. O Alfa Romeu cortava a noite velozmente. As duas mulheres continuavam abraçadas no banco de trás, misturando seus cabelos de ouro e cobre. Apolo Brito acionou o toca-fitas. Ouviram Debussy.

- É verão em Lyon - disse ele, com o pensamento longe.


Guará-DF, 17 de dezembro de 1989



O casulo exposto
Este conto foi publicado no meu último livro, O casulo exposto (LGE Editora, Brasília, 153 páginas, R$ 28), que enfeixa 17 histórias curtas ambientadas no submundo, inclusive político, de Brasília. O livro pode ser encontrado nas redes de livrarias: Leitura, Saraiva e Cultura.

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Editor: Antonio Carlos Navarro
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