terça-feira, 15 de novembro de 2011

Tu és minha

A noite caíra mais cedo. Úmida. Chovera à tarde. A chuva prolongava-se interminável, fininha, quase como névoa, despencando em gotas frias das folhas das mangueiras. Era fim de novembro e o outono apoderara-se de Belém, dos carros, das ruas, que pulsavam nas luzes vermelhas dos letreiros e nas traseiras dos automóveis nas esquinas. A vida manifestava-se na noite, nos bares, nos copos de bebida.

- Mais um! – Jorge pediu ao garçom. Tinha sempre de ir ali, a cada noite, quando estava na cidade, para tomar um ou dois Johnnie Walker. Havia três moças bonitas. “Nenhuma é tão bonita quanto Cátia” – pensou. “Não, nenhuma.”
- E as caçadas, como vão? – perguntou-lhe o garçom, que se chamava Julinho.
- Nesta época, agora, é ruim – disse Jorge.
- Ruim mesmo. Só chuva...
- Muita chuva até o começo de junho.
- Cruz, credo! – disse Julinho, que era novato na região.
- Pois sim! Mas em julho volta o sol e as praias ficam lotadas.
- E há praias por aqui?
- Há Salinas.
- Um momento... – disse Julinho, indo atender o pessoal do extremo do balcão. Quando voltou, Jorge já estava se retirando.
A chuva parara de vez e só quando o vento agitava as mangueiras é que se sentia pingos da água retida nas folhas. Gostava de andar e de ver a cidade quando voltava da selva. As luzes, as pessoas, os automóveis significavam a volta à civilização. Passou pela frente de um restaurante, uma dessas churrascarias apropriadas para receber famílias inteiras, e sentiu o aroma gostoso de iguarias gaúchas. Deu-lhe vontade de tomar chimarrão. Tomaria na casa de Cátia. Olhou para o relógio. Era cedo ainda. Mas não via a hora de rever Cátia. Pegou um táxi.
- Braz de Aguiar, por favor – disse ao motorista.
Gostava da Braz de Aguiar. Lembrava-lhe Copacabana, e Copacabana era um dos lugares que amava. Saltou a poucos metros do prédio onde Cátia morava. Era um prédio muito chique e ele se sentia mal ao cruzar o vestíbulo. O porteiro lançou-lhe um olhar desconfiado ao anuncia-lo pelo interfone. Ela subiu.
Cátia estava de camisola, linda, linda. Era uma camisola de seda branca, que se confundia com a pele da mulher. Seus cabelos caíam negros numa revolução sobre os ombros, em espasmos infinitos. Tinha olhos verdes, nariz arrebitado, lábios cheios, quase indecentes, e longos dedos. Tocava-a e deixava-lhe, a cada toque rude, um vergão vermelho, que lentamente desaparecia na alva pele acetinada. Ela estava ali, em pé, à sua espera, com seus olhos quase estrábicos, tornando-se insuportável sua ameaçadora sensualidade.
Lá fora, os rumores da noite viviam em outra dimensão e apenas um som indistinto, como que vindo do mar, de muito longe, chegava até eles, e diluía-se antes de tocá-los.
Jorge herdara de seu pai, que também fora caçador profissional, um sexto sentido quase feminino, e sentia a aproximação do perigo pelas narinas. Sentia literalmente o cheiro do perigo. O perigo fedia a frio e à falta de ar. Já estava com sua arma em punho quando viu o outro fazendo pontaria na sua cabeça. O disparo explodiu a delicadeza e a languidez do amo, e a tragédia entrou como gritos na sala. Lá estava o marido de Cátia, olhando pateticamente para nada, como se o olhar tivesse feito um esforço para ver o buraco de bala na própria testa. Cátia estava sentava num sofá. Chorava. Seus ombros se sacudiam de vez em quando. “Logo isto estará um inferno” – Jorge pensou, correndo ao quarto e trazendo um sobretudo, que jogou sobre Cátia. Era um apartamento que ocupava todo um pavimento e eles desceram pelas escadas. “Felizmente fica no terceiro andar” – Jorge pensou. Saíram diretamente da garagem para a rua. Ela estava descalça e tropeçou na calçada. Passou um táxi. Eles o pegaram.
- Vá! – disse ele ao motorista.
- Para onde?
- Vá! Vá para qualquer lugar! Vá!
Pouco adiante, Jorge mandou o motorista parar. Pagou-o. Logo passou outro táxi. Pegaram-no e desta vez Jorge disse a direção. Saltaram no Porto do Sal, onde os bêbedos riram ao ver a mulher descalça e manquejando. “A maré está cheia” – disse Jorge, baixinho.
O barco era confortável e rápido. Em poucos minutos estariam do outro lado do rio Guamá. A noite úmida abraçava o barco e o empurrava, espremendo-o na sua umidade e negrura. As chamas de um palito de fósforo iluminaram por pouco tempo a si mesmas, deixando uma brasa tênue no piche da noite. Às vezes, os gemidos de Cátia venciam estranhamente o barulho do motor, numa orquestração que só o vento dominava. Depois o vento apagava tudo e novamente, como que de propósito, ordenava aos metais que se imobilizassem subitamente; então, num crescendo, as cordas avançavam e avançavam, até que novamente a orquestra toda, enlouquecida, castigasse os ouvidos. Depois, quando aportaram, o vento morreu. Dentro da casa, agora, a noite era um som pianíssimo, murmúrios de Cátia, seus gemidos.
Atento, na varanda, de modo que pudesse ver pela janela a mulher no quarto, Jorge fumava. “É bom que ela chore bastante. Foi melhor assim” – pensava. E pensava também na próxima temporada de caça, na exibição aos turistas e também no longo inverno que ainda teriam de atravessar. “Por mais que viajemos para um país do sul, Cátia ainda terá seu inverno” – pensou. Entrou na casa e ficou parado a poucos passos da mulher, fumando. Cátia era uma mancha leitosa, evanescente, na penumbra. Às vezes, ele ouvia um gemido mais forte, mas logo o silêncio de antes voltava mais cavo, até que tudo imergiu na noite.

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