domingo, 18 de maio de 2014

Os portais da Amazônia

Isaías Oliveira aos 22 anos, em 1976, repórter
do jornal 
A Notícia, de Manaus. Seu romance
A Dimensão dos Encantados revela um Amazônia
sutil, que só a poucos é dado enxergar

A selva amazônica é esplendorosamente monótona e bruta como golpe de terçado 128. Ao olhar superficial do leigo, que, acidentalmente, caiu na Amazônia, a Hileia lhe parecerá o Inferno Verde, onde encurtará sua vida, devorado por microrganismos e insetos, ou torrado pelo sol equatorial, ou afogado pela água, não do mar doce, mas em estado gasoso, nos praticamente 100% da umidade relativa do ar. Desse modo, o incauto será corrido daquelas paragens, grávido da antiga ideia dos colonos de que a Grande Floresta só serve para três fins: construção de hidrelétricas; extração de madeira e mineral; e reserva de caça, pesca e escravos, especialmente para o pugilato do sexo. Ideia assentada na crença de que os colonos são deuses e os colonizados, seres inferiores, que existem para servir aos herdeiros dos sangues-azuis. Essa é a face obscura da Amazônia, o latejar da escuridão, espasmos da alma amazônida, a loucura e o malogro da civilização colonialista. Assim, o mais belo realismo fantástico da Terra, a maior diversidade biológica do planeta, a mais rica província mineral do mundo, revela-se o coração das trevas, uma zona imprecisa da alma.

A Dimensão dos Encantados (Editora Biblioteca 24 Horas, São Paulo, 189 páginas em corpo 10), do jornalista e escritor amazonense Isaías Oliveira, à venda na amazon.com.br, é um dos romances mais emblemáticos do Trópico Úmido, pois mostra, como nenhum outro romance escrito por autores da região, as duas faces da selva, como o despencar em um precipício, mas, quase ao cair no fundo, estender as asas e flutuar. Em A Dimensão dos Encantados a floresta e o rio ganham vida, os adjetivos se tornam substantivos e o pesadelo se materializa na mente do leitor. “A vida na mata é o eterno caminhar sempre pelos mesmos caminhos”; “As coisas andavam em círculos, vivíamos o resumo de dias iguais e essa repetição acabava por atrofiar, com o tempo, a nossa própria existência.” 

Para o autor, “existe uma Amazônia desconhecida do mundo, ainda não descoberta pelo homem moderno. Nela, o sobrenatural e o humano se misturam, na dimensão fantástica da mente”. No substrato da epiderme amazônica entrelaçam-se planos sutis, estanques, porém com passagens secretas entre eles, portais por onde só passam seres encantados, além dos que desenvolveram a intuição e a espiritualidade. 

Assim, na superfície do romance de Isaías Oliveira paira toda a tragédia da Amazônia: a mentalidade colonizada de índios, ribeirinhos, caboclos, mulatos, cafuzos, mamelucos, citadinos, corrompidos nas garras impiedosas do europeu, da Igreja, dos missionários, de políticos corruptos. A Dimensão dos Encantados desmitifica a Amazônia turística e a dos grandes projetos no Trópico Úmido, a serviço das potências hegemônicas, e não para o desenvolvimento sustentável dos amazônidas. O cruel é que a ferramenta utilizada pelo carrasco para espoliar a floresta é o caboclo, que também serve para matar os da sua etnia como quem mata um carapanã. 

 “Sob o manto verde da floresta amazônica esconde-se a verdade sobre mundos e civilizações diferentes convivendo num mesmo espaço, porém em diferentes tempos e dimensões da matéria e da energia, seres de planos existenciais diversos coexistindo num mesmo recanto da mata ou curso de rio, a maioria sem jamais cruzarem seus caminhos. Outros, entretanto, dotados de energia e percepção especiais, são capazes de encontrar e atravessar os portais nas fronteiras desses mundos” – diz Isaías Oliveira. A Dimensão dos Encantados é um desses portais. 

Convivi com Isaías Oliveira durante dois anos (1976-1977), em Manaus, no extinto jornal A Notícia. Eu tinha 21 anos; ele é um ano mais velho do que eu. Apesar da idade, já era experiente, maduro, sábio, culto e sofisticado. Sabia tudo sobre a selva profunda; fora, ainda garoto, guia de turistas nas sendas da Hileia. Seu texto também já era um diamante, embora bruto, e seu trabalho de reportagem era sempre bem pesquisado, investigado e apurado. 

Em 1997, deixei Manaus, onde mora a família do meu pai, João Raimundo Cunha, e me mudei para Belém, mas a amizade entre o autor de A Dimensão dos Encantados e eu estava selada para sempre. Em 2000, publiquei Trópico Úmido – Três Contos Amazônicos. A personagem central da primeira história desse livro, Inferno Verde, chama-se Isaías Oliveira, não por acaso um jornalista. 

Isaías Oliveira conhece profundamente o Trópico Úmido, não a Hileia mitológica dos turistas, mas a Amazônia como ela é, inclusive com seus portais. Esse conhecimento o capacitou a escrever A Dimensão dos Encantados, seu romance de estreia. São duas histórias paralelas, e que em dado momento se cruzam: a de um menino ribeirinho que se torna madeireiro e um curumim que se perdeu no limbo, entre uma dimensão e outra, e se torna xamã. Os seres encantados vivem precisamente em planos diferentes, que se cruzam em portais da mente. 

Assim, A Dimensão dos Encantados pode ser lido como o mais pungente berro alertando para o assassinato da alma amazônida, com uma terçadada de 128 na carne.Trata-se de um desses livros que surgem de tempos em tempos, com o poder esclarecedor de que a vida não se passa somente no mundo físico; pelo contrário, vibra em outro plano.

Nenhum comentário:

Postar um comentário