sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

No topo da montanha brilha o verão

Atormentado pela fome, às 5 horas estava de pé. Não conseguira dormir nada. Sentia-se tonto e com a náusea que a fome prolongada causa. A última vez que comera algo sólido fora há dois dias. Só pensava no café. A casa de estudante dividia-se em três prédios. O maior e mais novo, que era onde ele morava, tinha uma fileira de quartos, de onde se podia ver o Hilton Internacional Belém. Lavou o rosto e desceu. Passou pela frente da vila, entre os dois grandes prédios, e subiu para o restaurante, que ficava no prédio velho. Às 7, o servente serviu a refeição, que consistia em café com leite e pão com margarina. Sentiu as costas macias do gato nos seus tornozelos nus, e pensou na sua cidade natal. Foi um momento de felicidade curto, pois se lembrou da carta que recebera no dia anterior. “Estou com sífilis” – dizia a carta. “No segundo estágio. Não há mais cura. Devo enlouquecer em dez anos. E morrer em quinze. Uma geração de filha-da-puta, a minha.” Sim, uma geração de filha-da-puta. Um, sifilítico; outro, louco; outro, apodrecendo, com fraqueza pulmonar, num povoado aurífero na fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa; outro, dipsomaníaco; outro, decapitado e castrado pelo seu próprio irmão. “Se eu não tomar cuidado viro mendigo” – pensou.

Ainda faltava muito para acabar o inverno. Dois anos. Era quanto faltava para sair da universidade. Deprimia-se a pensar nisso e mudou de pensamento, enquanto caminhava para o campus universitário do Guamá. No começo, quase não suportou a falta de mulheres. Não fazia nenhum esforço para tê-las. Era a economia de guerra, como dizia. Também sentia grande desejo de beber, mas resolvera que tanto bebida quanto mulher só teria quando pudesse tê-las com qualidade, com dignidade, e não como vira-lata. Ademais, tinha Julieta. Conhecera-a na universidade. Linda. Viu-a pela primeira vez no semestre passado. Estava a ler um livro no corredor de um dos pavilhões do básico quando ela passou ladeada por dois rapazes. Devia ter 21 anos. Sua pele era maravilhosa. Lembrou-o a pele de sua mãe quando jovem: um branco quase leitoso, acetinado. As pernas eram roliças, firmes. As ancas, equinas, e os cabelos negros e sedosos. Tinha lábios sensuais, e um defeito na língua, de modo que falava de uma maneira especial, como uma criança. Ao cerrar os olhos, notava-se um quase imperceptível esforço, e isso, de algum modo, acentuava-lhe o ar de criança. No semestre seguinte João descobriu que eram colegas de curso e que tinham várias disciplinas juntos. Não sabe como foi, mas se tornaram amigos. Para ele era muito que tivesse Julieta. Sua presença de mulher bonita lhe fazia um bem profundo.

Sentou-se, as pernas a tremer, suado e fraco da fome e da caminhada. Sentia premente necessidade de morder algo sólido. Tentou prestar atenção na aula, mas não conseguia reter as informações do professor. E foi assim até meio-dia. Chegara àquele estágio em que não há mais fome, mas uma dormência no estômago, uma contagem regressiva para o desfalecimento. Ir a pé da Cidade Velha para a universidade, de manhã cedo, após o café, era até agradável, mas tinha de pedir carona para voltar. Era a parte humilhante do seu dia. No caminho ia pensando que seria bom encontrar uma carta, um recado, qualquer coisa, mas a carta mensal que recebia de casa ainda ia demorar uma quinzena. O suco gástrico agitou-se. Pelo menos havia a mangueira. Sempre encontrava duas, três mangas. E à noite iria até a padaria e pediria ao Ogro – que é como apelidava o padeiro – um pão, e o Ogro lhe daria um pão massa fina do dia anterior. Depois de comê-lo, beberia um copo d’água e iria deitar-se.

À noite, sentindo um pouco de náusea, não teve disposição para ir à padaria e se deitou. Estava tonto, e com aquele sono que é um desmaio, que vem e vai.

- Ei! – escutou que lhe diziam. Abriu os olhos. Julieta estava em pé, ao lado da cama, com um leque de dinheiro na mão. Pouco depois estavam no bar do Hilton. Mas João continuava sentindo um vazio na barriga, cada vez mais sentia o vazio, até que o vazio se tornou um entorpecimento. Julieta se deitou a seu lado e o aqueceu com seu corpo macio e branco, como a epiderme de sua mãe. E então aquela dança louca deu lugar a um zumbido vago, como um avião lento, muito alto no céu.


Do livro A Grande Farra, edição do autor, Brasília, 1992, contos, esgotado

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