sábado, 9 de março de 2013

O voo do condor

BRASÍLIA, 9 de março de 2013 – Tomei o ônibus no fim da Avenida Comercial Sul, em Taguatinga, com destino ao Cruzeiro Novo. Sabe como são os ônibus em Brasília, sucateados e imundos. Era em torno de 11 horas, um sol de amolecer o asfalto e o motorista irritado com o calor e o congestionamento. A frota no Distrito Federal está em torno de 2,5 milhões de carros e as vias de ligação (aqui, rodovias urbanas) são poucas. O resultado já se viu. Falar nisso, acho que o trânsito em Taguatinga é um dos piores do mundo, até mesmo do que na minha cidade natal, Macapá, onde as ruas lembram a Lua, a sinalização é só para especialistas na decifração delas e a fiscalização é zero.
 
Elas entraram na Avenida Central, que secciona Taguatinga em norte e sul. Eram três. Duas pareciam irmãs gêmeas. Aboletaram-se no banco à minha frente, as três. Cariocas. Para mim, não há sotaque mais agradável do que o belenense, que soma a musicalidade do linguajar lisboeta, o indefectível tu, com a doçura do tupi e o sabor tropical da Linha Imaginária do Equador. Na mesma prateleira do sotaque belenense, guardo, no coração, a melodia do falar carioca, semelhante ao de Belém do Pará. Quando jovem, vivi em Copacabana. Costumava frequentar a biblioteca pública do bairro; às vezes, punha de lado a viagem que estava empreendendo para escutar a conversa de jovens estudantes em mesas lotadas ao meu lado. Punha-me a ouvir a musicalidade do falar da Zona Sul na voz daquelas doces criaturas, no momento de suas vidas em que se encontram no limiar da infância e da juventude.
 
Suas vozes me lembram, hoje, certas músicas que curam câncer, como a Nona Sinfonia de Beethoven. Segundo a análise que fiz, a coisa funciona mais ou menos assim: certos timbres, melodias, harmonias, regulam as glândulas hormonais; então, elas começam a produzir a porção exata dos diversos hormônios necessários ao funcionamento pleno do organismo, que, em harmonia consigo mesmo, expele as células cancerosas.
 
O fato é que eram três cariocas. Lindas. São necessários olhos clínicos e pureza para vermos realmente a beleza. “Os olhos são cegos. É preciso ver com o coração” – disse Antoine de Saint-Exupèry. Ele tem razão. Praticamente não enxergamos com os olhos cerebrais. Vincent van Gogh não era figurativo, mas o céu que ele pintava é tão intenso que chora. Danados são praticamente cegos; no mergulho suicida no vício, não sentem o agora e o agora, o momento mesmo da vida. São mortos-vivos.
 
Elas eram tão lindas que os vampiros, quando veem mulheres assim, rejuvenescem. Vampiros são, geralmente, homens de meia idade, a caminho acelerado para o túmulo, que sugam vida de mulheres jovens e lindas. Aproximam-se delas, aproveitando aglomerações, e aspiram-lhe o perfume, ouvem-lhes a voz, lambem-lhes com olhos de lâmina, e quando têm oportunidade, tocam-nas, e se logram as ter, sugam-nas até o caroço. São, paradoxalmente, hienas que se alimentam do belo.
 
As gêmeas eram as mais lindas. A primeira coisa que saltava aos olhos era sua pele, alva como um sorriso de criança, e macias como jambo maduro (os olhos podem desenvolver o tato). Eram altas e trajavam shortinho, expondo pernas maravilhosas ao escrutínio literário, sempre explorador. Seus olhares eram oblíquos, doces e misteriosos com o das mulatas de Di Cavalcanti, mas, na alma, agitados como o mar de ressaca, numa certa manhã de inverno em Copacabana. As gêmeas levavam nas orelhas os cabinhos ligando os ouvidos aos seus telefones celulares e de vez em quando uma delas manejava o telefone com os polegares, regulando sua vida virtual. A que não era gêmea usava um piercing, desses que lembram uma pequena verruga, no nariz, e cuidava das unhas. Conversavam, e creio que se entendiam mais por uma questão tácita do que pelo som propriamente dito, já que o ônibus sucateado resfolegava ao trânsito impossível e ao calor delirante.
 
Desci próximo ao Terraço, no Cruzeiro Novo, e entrei no shopping para tomar um espresso. O Terraço é bastante agradável. Meio aberto, logo à entrada, no átrio principal, mesas, e suas respectivas cadeiras espalham-se nos corredores. Frequento o Victória Café, que disponibiliza confortáveis mesas e cadeiras de vime (palhinha, como dizemos em Macapá). Lá, o expresso custa R$ 4. Apesar de ser um blend no qual quase não se nota grãos tipo arábica, e a colherzinha ser de plástico, o cafezinho é acompanhado de água mineral com gás e gelada, e um biscoitinho. O dióxido de carbono da água gaseificada serve para limpar as papilas gustativas e proporcionar, assim, a degustação dos mais de mil tipos de partículas do café; o biscoito, ou chocolate, é apenas um acompanhamento, com o intuito de se valorizar o serviço prestado pela cafeteria.
 
Em casa, mergulho na tarde. A tarde é como um rio largo, em solo linear, lento, na sua caminhada, sem pressa de desaguar em outro rio, ou no mar. Gosto mais ainda de certo momento da tarde, na sua agonia, quando flocos noturnos começam a cair, e nos damos conta de que a noite chegou de repente, como um navio todo iluminado.

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